THE PIANO (1993)
- Bianca R. Matos
- 14 de out. de 2020
- 5 min de leitura

Ao longo dos anos, o mundo cinematográfico foi sendo um alvo constante de acusações polémicas, nomeadamente pela predominância do sexo masculino na grande maioria dos parâmetros, e pela descriminação de géneros, desencadeada por uma mentalidade, muitas vezes, machista que distorce a imagem daquela que tem todas as condições para ser a arte mais influente de todos os tempos. É um facto que são raras as mulheres que dirigem um filme ou que compõem uma banda sonora. Todavia, essa foi a razão pela qual O Piano foi uma surpresa tão grande para o público. Afinal, não é todos os dias que um filme dirigido por uma mulher e cuja história se centra no mundo feminista, ganha tantos prémios e se torna tão influente, muito menos em tempos como os que vivemos, nos quais a desigualdade ainda é tão presente.
Dirigido por Jane Campion, a primeira mulher a ganhar um Óscar por melhor roteiro original, o filme conta a história de Ada McGrath, uma pianista muda que viaja para a Nova Zelândia com a sua filha, Flora, e com o piano - o seu instrumento e a sua mais pura forma de comunicação- , afim de conhecer o homem com quem aceitou casar por ocasião, Alisdair Stewart. Quando o seu marido se recusa a transportar o seu piano por falta de espaço na casa e decide vendê-lo, uma nova proposta surge por parte de George Baines: Ada dará aulas e receberá em troca uma tecla a cada encontro. À medida que o tempo vai passando, porém, os encontros vão-se tornando cada vez mais intensos e perigosos, todos eles possuidores de um erotismo inexplicável que intensifica o enredo.
O filme apresenta aspectos muito interessantes, nomeadamente a relação entre diferentes estatutos e as desigualdades de poder que se refletem muitas vezes no homem, na mulher, e na falta de comunicação entre eles que pode levar ao adultério, um tópico também muito pertinente para esta crítica. Outro aspeto interessante é a história de vida da protagonista, Ada, que é muda desde os seis anos sem nunca nos dar a conhecer a verdadeira causa do sucedido e dando-nos um grande vislumbre daquilo que é a verdadeira definição de uma boa representação por parte da atriz que a interpreta. É incrível como Holly Hunter consegue interpretar uma personagem de forma tão realista e sublime sem proferir uma única palavra durante as duas horas de filme. Os gestos, os olhares e até mesmo o piano - que é como se fosse a voz e a alma da protagonista - são as principais fontes que permitiram a Holly representar o papel da sua vida e ganhar o prémio de melhor atriz principal (totalmente merecido) - o público conseguia ouvir a sua voz através dos olhos. Já a pequena Anna Paquin tornou-se numa das atrizes mais jovens a ganhar um prémio; com apenas 11 anos de idade, teve a capacidade de interpretar uma Flora frágil e compreensível, contribuindo para a forte relação mãe-filha e para a inocência que o filme precisava para se tornar num êxito. Numa película cujas falas pertencem quase unicamente a mulheres, Holly e Anna ultrapassaram a fasquia daquilo que considerávamos uma expectativa aceitável, levando para o cinema duas interpretações que, com certeza, ficaram na história da sétima arte.

[AVISO: SPOILER]
A história, além de melancólica, é profundamente poderosa e veemente. As cenas mais intensas (destacando-se a mais surpreendente, na qual Stewart corta o dedo a Ada como forma de intensificar a posse do casamento convencional) possuem um teor pesado que pode ferir os olhares do público mais sensível; juntando à imagem fria com uma paleta baseada maioritariamente nos azuis e neutros da insípida paisagem neo-zelandesa e à fantástica banda sonora de Michael Nyman que conta com uma bela melodia triste que ressalta a angústia presente nos personagens e que facilmente se torna numa das bandas sonoras mais encantadoras de sempre.
A fotografia é igualmente um dos pontos fortes da trama. Jane procura mostrar primeiramente uma visão ampliada das ações e só depois mostrar o plano completo para que o público se sinta presente em cena e partilhe a mesma visão da protagonista. Já para não falar da imagem principal, a fotografia mais emblemática na qual as duas mulheres se sentam ao piano no meio da inóspita praia da Nova Zelândia. O fotógrafo fez um trabalho excelente e merece uma menção honrosa pelos fantásticos ângulos de filmagem e pelas imagens que tão bem nos situam relativamente ao tempo e ao espaço.
Todavia, se há pessoa que realmente merece uma menção honrosa, essa pessoa é a esplêndida Jane Campion, conhecida pelos seus filmes dramáticos, pelas suas histórias pesadas e profundas, pelos seus filmes feministas e acima de tudo pela criação de mulheres diferentes e com histórias fortes que fazem do feminismo, um tópico tão bonito e importante a ser tratado. O adultério, a descoberta do amor, a inocência de uma criança, o piano, a praia, o erotismo, a violência, o abuso, o escolher viver. Estes são os principais tópicos que Jane procura abordar com uma sensibilidade única que somente uma mulher conseguiria igualar. No fundo, este é um filme sobre a importância do sexo feminino e a dispersão que este tanto sofre comparativamente ao sexo oposto. Um filme que se passa no século XIX mas que ainda trata um tema tão atual, tornando-se num dos mais emblemáticos dos anos 90. Esta é a verdadeira definição de Jane Campion e este é sem sombra de dúvida o filme dela, e o que melhor descreve todo o trabalho da sua boa direção.

O cinema é uma arte que está em constante evolução. A cada ano que passa, novos ensaios vão sendo experimentados, novos métodos de filmagem vão sendo testados e novas histórias vão sendo vividas. Contudo, existem aqueles filmes que, por mais décadas que possam ter, a intemporalidade é uma virtude que nunca deixa de estar presente, nem mesmo nas curtas falas de uma cena breve. O Piano é, sem sombra de dúvida, um desses filmes que, embora não tenha ganho tanto reconhecimento (como muitos outros clássicos eternos), é um filme que deve ser indiscutivelmente assistido por qualquer um, principalmente por aqueles que anseiam por liberdade e independência, mesmo que isso signifique sacrificarmos o nosso mais fiel meio de expressão...afinal, quem sabe não reencontremos uma outra fonte, em tempos, perdida em nós mesmos?

Informação Adicional:
Direção: Jane Campion
Elenco: Holly Hunter, Anna Paquin, Harvey Keitel, Sam Neill
Género: Romance/drama
Duração: 121 min.
Classificação: 9/10
Frase favorita: At night! I think of my piano in its ocean grave, and sometimes of myself floating above it. Down there everything is so still and silent that it lulls me to sleep. It is a weird lullaby and so it is; it is mine.
There is a silence where hath been no sound / There is a silence where no sound may be / In the cold grave, under the deep deep sea. -Thomas Hood
🔝🔝🔝 muito bem escrito princesa! Orgulho nesse teu dom ♥️ Love you 😘🍀
Provavelmente a melhor crítica que li até agora!! Muito bem escrita, descreve na perfeição o fascínio que este filme exerce sobre nós.
Um filme intemporal, com uma melodia tão bela quanto triste,que nos apaixona e nos angustia ao mesmo tempo.
Parabéns Bianca!♥️♥️♥️